Idéias

Lâmpadas acessas que iluminam nossa escuridão mais secreta.
(Andrea Carolina)

domingo, 24 de janeiro de 2010

História 1 - A Arte do coração

Levantou cedo. Não era um hábito, mas há anos se esforçava para que se tornasse um. Talvez um esforço arisco, que escapava das mãos quando era conveniente. Olhou para o espelho e nada viu de fato. Isso sim era um hábito. O banho foi rápido, sem nenhum tipo de percepção refinada. Apenas um banho, repleto de pensamentos que não deixavam espaço para o presente momento, pois ela insistia em se fragmentar e perder de vista suas partes no passado e no futuro.
A roupa foi escolhida sem sensibilidade, o que obviamente deixou Bia muito parecida com as outras mulheres. Enquanto se aprontava o sono a acompanhava. Despertar não é apenas abrir os olhos.
-- Onde está meu celular? – interrompeu Leo, com a mesma voz que ela tanto ouvia e mal escutava.
-- Você perdeu de novo? – respondeu sem pensar, o que deixou escapar a sutil constatação de que esse tipo de frase não ajuda em nada e tampouco estabelece comunicação.
Ele apenas lançou um olhar frio, do tipo que requer o desenho de um pedaço de gelo quando exibido nos gibis. Cansado das constantes críticas que recebia, simplesmente continuou procurando o aparelho. Bia estava tão absorta em um turbilhão de pensamentos, que não notou a queda de temperatura no quarto.

A temperatura continuou caindo em diferentes situações. Todas tinham o mesmo pano de fundo: a voz que não alcança o ouvido para chegar ao coração e estabelecer comunicação.

A separação foi inevitável.


Lembrou-se da cena inicial, em que estava frente a frente com o outro e não soube extrair sentido. Era como se grande parte da sua vida estivesse no piloto automático, dirigida por ações, pensamentos e sentimentos mecânicos. Não queria repetir esse padrão no relacionamento que vinha tecendo com a Vida. Dos dias compartilhados ela se lembrava com carinho. Mesmo no frio, outro personagem estava em cena aquecendo aqueles corações. E as lembranças seguiam.
Uma voz chamou pela mãe de forma branda e suave, apesar da fome. Bia deixou tudo e correu contente, pois nada era mais delicioso que o despertar daquela criança. O nome era Maria Luiza, cujo samba é bonito pra chuchu. Sim, era uma homenagem ao Tom Jobim – aceitando que rimas infantis podem ter seu valor. Na adolescência ouviu essa música diversas vezes, e sempre foi grata à arte que o coração pode expressar. Desde sempre, Bia respirava melhor quando estava acompanhada de Toquinho, Vinicius, Chico, Gonzaguinha, Boca Livre, Nietzsche, Drummond, Pessoa ou Giannetti. O engraçado é que era proposital, ela forçava a presença de cada um na tentativa de sentir-se mais adequada ao meio.
Não tinha nenhuma pretensão de ser intelectual, até porque se aborrecia com aqueles que gostavam e lutavam pelo rótulo. Só queria se aproximar de quem pensa, sente e vive ao invés de permanecer na névoa de preocupações e expectativas em cima de um futuro desenhado – e curiosamente não era ela quem tinha o lápis nas mãos. Queria mesmo era ser íntegra; inteira. Sonhava com o dia em que sua humanidade não lhe fosse estranha.

-- Arruma a cama. Eu vou cortar uma fruta para a Malu. – Ah, se ela soubesse! Frases curtas carregam em cada palavra registros de uma história não interpretada.
Ele ouviu, e mesmo sem pensar a respeito sentiu certo incômodo com o tom e autoritarismo que permeavam o falso diálogo que eles mantinham. Arrumou a cama, pois suas ações mecânicas permitiam a forma que a relação vinha adquirindo.
Ele era paciente, e os gregos já alertavam: nada em excesso! Nem mesmo um sentimento tão nobre, uma vez que a fronteira para a submissão era tênue. Dessa maneira, o desrespeito pôde avançar conquistando territórios que não lhe pertenciam.
-- Estamos atrasados. – ele avisou, interrompendo sem saber o único momento que permitia a integração passageira daquela que insistia em tentar penetrar e compartilhar as emoções que para ele eram estranhas.

Ela sempre estava atrasada. Insistia em perceber melhor as coisas depois que elas haviam passado. E mais fragmentos abandonavam sua integridade.
E o riso nessa história? Ah, o riso. Sim. Vamos falar do passado então.
Era uma vez, uma jovem cheia de potencial – que obviamente não sabia disso, senão não haveria motivos para o riso. Ela olhava para as estrelas e deixava ali seus sonhos. Escadas para chegar até lá? Ahn?
Uma carência estranha a acompanhava, e ela buscava preenchimento nas relações. Se perceber qualquer semelhança com a sua vida lembre-se: é mera coincidência. Além da carência, havia o medo. Com essas duas companhias, ela enfrentou relações que de amorosas pouco tinham. Aprendizado muito, pois o mundo natural nada desperdiça, e isso permitia o movimento.
Seus namoros duravam anos, demonstrando a teimosia que lhe era peculiar. Queria ser vista, mas era mais míope que as vítimas de seus quereres. Não sabia de nada disso, só acreditava que estava fazendo escolhas. Tudo bem, agora pode gargalhar.
Conheceu Leo em um momento tão confuso quanto seus pensamentos. Pode-se dizer que foi uma época de justificativas necessárias para que ela não desistisse de si mesma. O encanto que a história dos dois carregava não permitiu a percepção clara do todo. Maneira diferente de dizer que a paixão é cega, pois o amor tudo vê.

Não pense que não existia amor. Bia apenas não soube deixá-lo ocupar o lugar devido na hora certa. Arte é isso.

E de repente...

... entendeu que seu coração não lhe pertence. Tudo o que ela poderia conseguir era a captura nos momentos de expansão, mas logo vem a contração e ele escapa. Era a hora da escolha: se deixar guiar por pensamentos ordenados pela cultura, sociedade, família e experiências que lhe couberam ou buscar seu coração, mesmo sabendo que ele voltaria a escapar. Quantos espelhos ainda a esperam?

Paradoxo

Os paradoxos confundem porque aqui na polaridade não servem. Eles estão além da dicotomia do nosso mental, por isso exigem o entendimento do coração. Ela soltou um riso irônico, quase um suspiro. A palavra coração era como o seu universo: infinito nas possibilidades – ela jamais saberia a quantos anos-luz estava da próxima descoberta de sua própria imensidão. Sentiu as batidas desse órgão que tanto intriga, e notou que eram fruto da contração e expansão necessárias para que ela continuasse viva. Riu nervosa, como se de repente não fosse confortável habitar a própria pele. Aceitar a morte de fragmentos que ela pensava serem o todo que a compunha era a única maneira de continuar viva. Paradoxos imbecis e poéticos.

Olha e enxerga

Parou em frente ao espelho. Pensou que era o tipo de confronto batido e de nada serviria. De repente, sentiu aquela falta de ar que tornava a tentativa de habitar o próprio corpo tarefa sobre-humana. Fitou sua imagem e entendeu que era invisível para o próprio olhar. Enquanto tentava enxergar ouviu o vento, que mesmo invisível não deixava dúvidas de sua presença entre as folhagens. Embora seu olhar para a imagem no espelho não alcançasse toda sua essência, ela sabia que ali estava. Não duvidava que seu movimento existisse mesmo onde os olhos não estavam e entendeu, fatidicamente, que o vislumbre de toda a Terra não deixaria ver as direções assumidas pelo sopro divino. Ah! Ela seria um mistério eterno para si mesma, o que revelou que existir era cansativo e encantador ao mesmo tempo.

Busca

Os cachos recém-descobertos cobriam os ombros, oferecendo a sensação de limite para parte do corpo. Aquilo não bastava, ela estava cansada das partes e fragmentos. Mas, como esses paradoxos que insistem em visitar nossa existência quando nada faz sentido, naquele momento ela precisava dessas partes e fragmentos. Tinha esperança de que após um enredo em ciclo eles pudessem oferecer sentido para as linhas que ela buscava.Tecer essa história virou processo orgânico, desses que precisam acontecer para que as coisas funcionem. Ela não sabia de nada, não sabia por onde começar e nem mesmo onde tudo aquilo iria terminar. Caminhou pela casa, tentando absorver aquelas cores e cheiros. Quem sabe assim, algo acontecesse. Os pés descalços procuravam raízes e os cachos desfeitos armavam, buscando o céu

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Nova percepção

O que parecia uma única voz, de repente revelou ser algo mais próximo de um coral desafinado. Tentava conciliar a compreensão e a escuta de cada um daqueles pensamentos emitidos por sua mente. Foi tomada por espanto quando notou que cada voz se originava em um lugar diferente, mas todas estavam ali - exigindo mais harmonia para que ela pudesse seguir de maneira mais consciente.
Ela precisava aceitar as mudanças, deixar o passado morrer e transformar seu presente e futuro. Intuitivamente buscou seu lugar e o encontrou diante de uma tela em branco. Isso mesmo, uma tela em branco. Era tudo o que ela tinha enquanto buscava algo sem nome.

"Ah! Mal sabe a moça que é onde tudo estremece que Eu consigo surgir de modo mais expansivo. Mesmo confusa ela sabe que está na hora. O mundo não precisa de pessoas boazinhas, precisa de pessoas conscientes. A Consciência que vos escreve fica sem espaço quando a moça se movimenta entre o certo e o errado. A dualidade me consome - moralismo barato que insiste em se explicar exaustivamente e assim não me resta nenhum espaço vazio."